8.7.10

Argumentos do real

Pragmático
O argumento pragmático fundamenta-se na relação de dois acontecimentos sucessivos por meio de um vínculo causal. O argumento de Hamlet, no exemplo anterior, trabalha nessa linha, pois, deixando de matar o rei usurpador, evita que essa morte seja causa de um acontecimento futuro que ele não deseja: que a alma do tio vá para o céu. O mais comum, entretanto, é a transferência de valor de uma conseqüência, para a sua causa.

Exemplo: uma semana após a implantação do Novo Código Nacional de Trânsito, em 1998, os jornais divulgaram uma estatística que comprovava um decréscimo de acidentes com vítimas da ordem de 56%. Essa estatística serviu de tese de adesão inicial para a tese principal: a de que o novo Código era uma coisa boa. Para que o argumento pragmático funcione é preciso que o auditório concorde com o valor da conseqüência.

O texto a seguir, de autoria de Paulo Coelho, utiliza o argumento pragmático:

Prevenção
Paulo Coelho
O mullah Nasrudin chamou o seu aluno preferido: ”Vá pegar água no poço”, disse.
O menino preparou-se para fazer o que lhe fora pedido. Antes de partir, entretanto, levou
um cascudo do sábio. ”E não entre em contato com jogadores e pessoas vaidosas, senão terminará perdendo sua alma!”, disse o sábio.
”Ainda nem saí de casa, e já recebi um cascudo! O senhor está me castigando por algo que não fiz!”
”Com as coisas importantes na vida, não se pode ser tolerante”, disse Nasrudin. ”De que adiantaria castigá-lo, depois que já tivesse perdido sua alma?

O valor de manter pura a alma do menino é transferido para a causa: o castigo aparentemente é injusto.
A lei do carma para os hindus fundamenta-se no argumento pragmático. Dizem eles que os males que as pessoas sofrem na vida presente, sem razão aparente, são justificados por faltas cometidas em existências anteriores. A causa, que não é visível nesta vida, estaria em uma vida passada. Trata-se do carma dessa pessoa.
É preciso, contudo, bastante cuidado e, sobretudo, muita ética, no uso do argumento pragmático. Caso contrário, estaremos de acordo com aquela máxima que diz que os fins justificam os meios. Muitas pessoas acham que, porque tiveram uma educação rígida, tornaram-se competentes e, por esse motivo, pretendem, quando forem pais, educar seus filhos da mesma maneira.
As superstições são também fundamentadas no argumento pragmático. O supersticioso acredita, por exemplo, que, como foi assaltado numa esquina após um gato preto ter passado à sua frente, o motivo foi o gato. Transfere o azar do assalto para a causa supersticiosa do gato preto.

Desperdício
Esse argumento consiste em dizer que, uma vez iniciado um trabalho, é preciso ir até o fim para não perder o tempo e o investimento. É o argumento utilizado, por exemplo, por um pai que quer demover o filho da idéia de abandonar um curso superior em andamento. Bossuet, grande orador sacro, bispo da cidade francesa de Meaux, utilizava esse argumento, ao dizer que os pecadores que não se arrependem e, dessa maneira, não conseguem salvar suas almas, estão desperdiçando o sacrifício feito pelo Cristo que, afinal, morreu para nos salvar.

Exemplo
A argumentação pelo exemplo acontece quando sugerimos a imitação das ações de outras pessoas. Podem ser pessoas célebres, membros de nossa família, pessoas que conhecemos em nosso dia-a-dia, cuja conduta admiramos. Posso defender a tese principal de que as pessoas de mais de cinqüenta anos ainda podem realizar grandes coisas em suas vidas, utilizando como tese de adesão inicial o exemplo de Júlio César que, depois dos cinqüenta anos, venceu os gauleses, derrotou Pompeu e tornou-se governador absoluto em Roma.
Dizem que, quando Tancredo Neves pretendia ser candidato à presidência da República, houve, dentro do PMDB, rumores contrários à sua candidatura, alegando ter ele idade avançada. Imediatamente, Tancredo argumentou pelo exemplo, dizendo que, aos 23 anos, Nero tinha posto fogo em Roma e que, com 71 anos, Churchil tinha vencido os nazistas, na Segunda Guerra Mundial;


Modelo ou pelo Antimodelo
A argumentação pelo modelo é uma variação da argumentação pelo exemplo. Os americanos costumam tomar George Washington e Abraham Lincoln como modelos de homens públicos. Aqui no Brasil, falamos em Oswaldo Cruz, Santos Dumont, mas também em Albert Einstein. Podemos dizer a um garoto que ele não deve acanhar-se de ter problemas em matemática (tese principal), pois até mesmo Einstein tinha problemas em matemática (tese de adesão inicial).
A argumentação pelo antimodelo fala naquilo que devemos evitar. Segundo Montaigne, o antimodelo é mais eficaz que o modelo. Dizia ele, citando o estadista romano Catão, que ”os sensatos têm mais que aprender com os loucos do que os loucos com os sensatos”.
Contava também a história de um professor de lira que costumava fazer seus discípulos ouvirem um mau músico que morava em frente da sua casa, para que aprendessem a odiar as desafinações.
Um caso comum de antimodelo é o do pai alcoólatra. Raramente pais alcoólatras têm filhos alcoólatras. O horror ao antimodelo é tamanho que, muitas vezes, os filhos de alcoólatras acabam tornando-se completamente abstêmios.

Analogia
Quando queremos argumentar pela analogia, utilizamos como tese de adesão inicial um fato que tenha uma relação analógica com a tese principal. O renomado médico baiano Elsimar Coutinho utiliza a argumentação pela analogia, em um livro chamado Menstruação, a Sangria Inútil, defendendo a tese (principal) de que as mulheres devem evitar a menstruação, tomando uma medicação que iniba a ovulação. Ao ser questionado se isso não seria interromper uma coisa natural, diz ele que nem tudo aquilo que é natural é bom. Um terremoto, por exemplo, é uma coisa natural e não é boa. Uma enchente é uma coisa natural e não é boa. Uma infecção por bactérias é uma coisa natural e não é boa. Tanto que tomamos antibióticos para combatê-la. Segundo ele, a menstruação, embora natural, tem aspectos indesejáveis como a tensão prémenstrual, e o perigo de enfermidades graves como a endometriose. Combatê-la, pois, com medicamentos, como fazemos com os antibióticos em relação a uma infecção, é uma medida acertada, diz ele.
Completa ele a sua argumentação, ainda por analogia, dizendo que assim como a humanidade viveu dois mil anos sob os ensinamentos de Hipócrates e Galeno, segundo os quais a sangria era o mais poderoso e eficiente remédio para todos os males, muitas mulheres ainda vêem a menstruação como um mecanismo purificador pelo qual a natureza se livra de um sangue sujo ou ruim.

O jornalista Carlos Heitor Cony, comentando a reeleição do presidente Fernando Henrique
Cardoso, em 1998, escreveu o seguinte artigo no jornal Folha de S. Paulo:

NON HUNC, SED BARABBAM
"Vou mesmo de latim para comentar a vitória de FHC no último domingo. Lendo os jornais nos últimos dias, previ que ele teria 80% dos votos. Acho que os esforçados panfletários a favor exageraram um pouco. Afinal, diante de todas as excelências e boas intenções do candidato à reeleição, os 50 e poucos por cento que obteve nas urnas não lhe fizeram
justiça.
Volto ao título. Creio que a primeira eleição historicizada foi aquela promovida por Pilatos, que desejava livrar a cara de Jesus e o colocou em confronto com Barrabás, um assassino que estava para ser crucificado. Era costume libertar um condenado por ocasião da Páscoa judaica.
O raciocínio de Pilatos foi um voto de confiança na sabedoria do povo: entre um assassino e um profeta cujo crime era anunciar o Reino da Verdade, a plebe rude salvaria o profeta e condenaria o criminoso.
Ledo e ivo engano! Não havia TV, cientistas políticos e institutos de pesquisa para influir na vontade popular. Pilatos exibiu o profeta exangue, nem precisou mostrar o adversário,
todos sabiam que Barrabás não prestava mesmo, sua fama de maus bofes era conhecida na Galiléia, na Samaria, até mesmo nas vizinhanças de Qunram.
Prometeu que libertaria o escolhido pela vontade soberana das urnas - que eram de boca e ao vivo.
Estupefacto, o procurador romano ouviu o que não esperava: ”Non hunc, sed Barabbam!”
(”Não este, mas Barrabás!”) Foi aí que Pilatos lavou as mãos. Não era mais com ele.
Sabemos como tudo terminou: Jesus seguiu para o Calvário, Barrabás deu no pé e nunca mais se soube dele. Ficou sendo, apesar de tudo, o primeiro a ser salvo, literalmente, pelo Salvador.
Costumo invocar situações-limite para tentar definir o que penso. O Brasil tem alguma coisa a ver com aquele trapo de homem coberto de sangue, flagelado e coroado de espinhos. Nem o FMI nem o G-7 dariam um centavo por ele. Resta saber para onde o Barrabás fugirá quando chegar a hora."

Cony não manifesta explicitamente seu pessimismo pela reeleição de Fernando Henrique.
A argumentação pela analogia, referindo-se à opção dos israelitas por Barrabás, se encarrega disso. Fica subentendido que o povo brasileiro escolheu o pior.

A argumentação pela analogia não precisa ser longa. Às vezes, em uma frase é possível
sintetizá-la, como fez Ibn Al-Mukafa7 que, para convencer as pessoas a não ajudarem pessoas ingratas, diz que ”Quem põe seus esforços a serviço dos ingratos age como quem lança a semente à terra estéril, ou dá conselhos a um morto, ou fala em voz baixa a um surdo”.

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